O Monstro
Ela abriu a porta do quarto e a escuridão engoliu-a.
Isto poderia ser uma história normal, sobre um quarto tão escuro, que nenhuma luz o conseguia penetrar. Mas não é. Nem a história, nem a escuridão do quarto, são normais. Nem a rapariga que abriu aquela porta o foi alguma vez.
Há quem não acredite em monstros debaixo da cama, mas há uma razão porque à noite os barulhos ecoam e os passos soam mais alto ao pisarmos o chão. Na noite moram criaturas que só os mais sensíveis pressentem, e que ninguém vê. Ninguém, excepto a rapariga, claro está.
Deu um passo, encarando a escuridão de frente. Estendeu o braço; sabia que ele estava ali, que a pressentiria. Momentos depois sentiu uma mão fechar-se sobre a sua, um toque que não era humano, mas também não era bem extraterrestre. Aquele toque era de algo que tinha vivido entre mundos durante muito tempo: a Terra é boa a acomodar os que não pertencem a lado nenhum.
Fechou a mão e, olhando para baixo, viu uns olhos abertos que cortavam o breu e a fitavam, num misto de temor e alívio. Baixou-se, tacteou o chão à sua volta e finalmente conseguiu sentar-se com firmeza.
“Estou aqui. Já estou aqui.”
Da próxima vez que pestanejou a escuridão fora substituída por penumbra. Agora ela via o contorno, apenas e só o contorno, dos objectos à sua volta. O sol ainda se punha para lá da janela, dando ao mundo um tom vermelho e dourado.
A primeira vez que o vira, fora ao contrário. A luz também se esvaía lá fora, mas ele dera-lhe uma luz mais intensa, para que ela não tivesse medo. Em troca ela contara-lhe histórias e desde aí ele vinha sempre visitá-la à mesma hora, sem atrasos nem ausências. Era ela quem agora se ia ausentando pouco a pouco. Aos cinco anos tinha hora certa para deitar; aos catorze esquecia-se da hora muitas vezes. Eram cada vez mais estes esquecimentos e, de todas as vezes, ele entrava em pânico e a escuridão que nele nascia crescia e transbordava por todo o quarto.
Ela prometera-lhe não ir a lado nenhum. Afinal, os monstros debaixo da cama também se sentem sós. Se não houver ninguém para acreditar neles, como é que eles sabem que realmente existem?
Agora aperta-lhe a mão de novo, veste o pijama e deita-se. Ele recolhe-se de volta ao chão liso e enquanto ela vai ajustando a almofada ele vai puxando de novo a escuridão, como se de um cobertor se tratasse.
Anos mais tarde, ela tem as malas feitas e os sonhos ainda por fazer. Parte numa aventura que dura um ano inteiro, por países onde o poente tem outros tons e as almofadas nem sempre existem. Mas na hora de dormir, mesmo sem horas, a escuridão sempre regressa para lhe tapar o frio da distância. E ela sabe que se abrir os olhos e estender o braço, o monstro debaixo da cama ainda lá vai estar.
Nem todos os monstros têm medo de adultos.
imagem: Alexandra
Texto: carina.